Por Márcia Acioli*
Um fato impensável
invade lares de milhares de cearenses pela TV. Desavisadas, as pessoas em plena
luz do dia assistem ao estupro de uma menina de 9 anos no dia 7 de janeiro de
2014 pela TV Cidade, de Fortaleza, afiliada da Rede Record. Como se não bastassem
os dezessete minutos de exibição do estupro incluindo imagens do rosto da
criança, a emissora ainda mostra a casa da vítima, violando o Estatuto da
Criança e do Adolescente que preconiza no seu artigo 17 “O direito ao respeito consiste na
inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do
adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia,
dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”.
O grau extremo de
violência e de dor daquelas imagens é consenso. Não há quem conteste a
ocorrência de injustificado ato de desprezo pela vida humana. No entanto, a
violência não se restringe ao estupro. A exibição tem um efeito mortal sobre
uma menina que certamente não quer reviver a cena, que não quer que outras
pessoas a vejam naquela situação. Ela foi violada em sua intimidade, exposta no
seu sofrimento máximo; naquele que, possivelmente será um dos maiores e mais
marcantes de sua vida. Além de banalizar o estupro, a veiculação do ato na
televisão viola o direito inalienável à privacidade. Portanto, a menina é
violada inúmeras vezes. Uma pelo agressor direto, outras pelo agressor
camuflado. Os efeitos da conjunção violência / exibição são devastadores. A
publicação dessas imagens em nada difere das pornográficas. Ambas são
exploração da imagem da criança na relação de exploração cruel de sua
sexualidade. Por outro lado uma audiência que, acostumada às cenas de terror e
apresentadores histéricos incitando ao ódio, assiste com crescente desejo por
vingança. A bola de neve da violência cresce descontroladamente. Linchamento
público acaba sendo a única perspectiva para se conter a violência sexual. A
exibição o vídeo tem o único propósito de fazer da violência um espetáculo para
uma audiência educada para o sangue. Não é preciso ver um estupro para saber
que ele é violento. Este tipo de imagem importa somente a um grupo restrito de
profissionais que tem como responsabilidade o trato direto ou indireto com a
questão. Para prestar um importante serviço à sociedade as TVs deveriam
discutir profundamente a violência sexual, considerando a complexidade desta
modalidade de violência contra crianças e adolescentes. É preciso discutir as
perspectivas da idade, da identidade de gênero, das motivações de estupro, dos
agressores e muito mais. Por mais monstruosa que seja a violência sexual, o
agressor também é humano e é justamente a sua dimensão humana que a praticou
(ou pratica). É essencial que se compreenda, portanto, o nascedouro da
motivação. O problema, embora pessoal, é também social e atinge a milhares de
crianças pelo país inteiro, de múltiplas formas. Assim, a única justificativa
para tratar de estupro na TV seria problematizá-lo para que todos os segmentos
da sociedade fossem provocados a mudar, a eliminar, a coibir, a intimidar os
valores e gestos que permitem que tal violência seja praticada. Considerando
que a TV aberta é uma concessão de um serviço público, submetida à decisão do
Congresso Nacional regulamentada pelo Ministério das Comunicações, há
responsabilidade do estado perante o fato e o estado deve uma resposta à
sociedade brasileira. Multa, fim da concessão, responsabilização dos dirigentes
da emissora é o mínimo que se espera. É importante recuperar aqui o debate
nacional para um novo marco regulatório da comunicação que visa “garantir a
estrita observação dos princípios constitucionais da igualdade; prevalência dos
direitos humanos; livre manifestação do pensamento e expressão da atividade
intelectual, artística e de comunicação, sendo proibida a censura prévia,
estatal (inclusive judicial) ou privada; inviolabilidade da intimidade,
privacidade, honra e imagem das pessoas; e laicidade do Estado”. (Vale
acessar o site da campanha para Expressar a Liberdade ) Enquanto isso todo o
esforço do mundo dificilmente devolverá à menina a alegria de sua infância. *Assessora
política do Inesc e mestre em educação pela UnB.
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